terça-feira, setembro 26, 2006

Memórias II

Entonces, digo, então, mostrei meu livro de Nietzsche, Ecce Homo em espanhol para ele que enfatizava que “eu estava fazendo algo tão legal, que era aprender a falar com ‘meus primos’”, pois aqui não nos interessamos em crescer como comunidade latina, a velha questão do MERCOSUL e a falta de interatividade com nossos hermanos. Em apenas trinta minutos, Juan me contou tudo sobre sua vida, suas preocupações com as crianças (era professor de espanhol e lecionava por prazer), com a violência que as cercava, a falta de orientação sexual, a supressão da infância - a forma de como eram forçados a queimar etapas pelo trabalho infantil ou exemplos de convivência dados por uma família desajustada.Entre seus dados biográficos, ele mencionava aspectos do seu cotidiano de adaptação, até que citou o porquê de estar tão perturbado naquele dia.Sua esposa ia viajar e ele precisava lhe comprar uma frasqueira, e lhe fazer o mimo de preparar salada de frutas.
A gente cria estereótipos e se surpreende com nossos preconceitos mais recônditos, pois sua alegria me fascinava: ele emanava a felicidade de alguém pleno e de bem com a vida, pois eram doze anos de casamento com uma brasileira, de como largou tudo e veio a casar com ela. Ao falar de sua companheira, o argentino a descrevia com tanto orgulho, com tanta devoção que qualquer poderia jurar que ele falava de um filho, seus olhos brilhavam e a todo instante sorria como se sua pele bronzeada fosse emanar raios de sua aura fulgurante por sua realização amorosa.Ele disse que se pudesse chegaria a dizer para cada um que estava feliz, mas que não queria ser taxado de louco!
Curiosidade bateu, pedi para ver uma foto dela.E carregava na carteira não só uma, mas várias desde a mais antiga apontava uma P&B “mira mi chiquitita”, até as atuais nas quais ela aparecia com um sorriso amarelo por vestir a camisa da Argentina (pois é, o amor faz milagres...).Ela é uma bela morena, rechonchudinha, alegre e com sorriso de menina, aposto que os dois tinham a mesma idade.Descobri ainda que na verdade ele era filho de libaneses e que seu verdadeiro nome era Abdala e que havia perdido suas tias nos últimos conflitos.Sua opinião era inconteste frente ao posicionamento dos “americanos”: como você pode dizer que gosta da filha e dizer que não gosta da mãe?Comparação simples, mas cheio do sentimento que existe no Oriente Médio.Os americanos apóiam Israel e desaprovam atitudes dos países vizinhos, mesmo que estes estejam exercendo seus direitos de soberania (nota: não sou anti-semita, é pura realidade).Juan, ou melhor, Abdala, traduziu com palavras práticas o que venho sempre pensando: que realmente nossa cultura nos dá parâmetros limitados, conceituando aquilo como o que seja certo ou errado para um determinado povo, a gente acaba se alienando pela nossa perspectiva ocidental.Seus parentes morreram porque não deixaram terras que lhes pertenciam, e não fariam isso para viver em fuga constante.Loucura ou cultura de um povo?
Pedindo desculpas, vejo o homem alto e falastrão se despedir, eu lhe digo que não era problema, já que eu tinha uma “tarde de pesquisas” e algum tempo livre.Corro, para não perder mais outros minutos na enorme fila do provador, saio com um vestidinho na mão, pego outra fila para pagar.E desço as escadarias da Lapa com pressa, pois o ônibus no submundo da estação não é seguro para uma mulher solteira, mesmo cedo.Nane, que divide o apartamento comigo ligava preocupada pelo fato de não ter me encontrado em casa e eu a tranqüilizava dizendo que estava a caminho. Lia as primeiras páginas de Gabo dentro do ônibus preso no engarrafamento, Memórias de minhas putas tristes, que só cheguei a concluir quando instalei a luminária de cabeça junto a mim.Deixei marcada a página 75, onde justamente ele define o amor e que bem traduzia o sentimento de Juan-Abdala:

“Virei outro (...). Me pergunto como pude sucumbir nesta viagem perpétua que eu mesmo provocava e temia. Flutuava entre nuvens erráticas e falava sozinho diante do espelho com a vã de ilusão de averiguar quem sou. Era tal meu desvario, que em uma manifestação estudantil com pedras e garrafas tive que buscar forças na fraqueza para não me colocar na frente de todos com um letreiro que consagrasse minha verdade:Estou louco de amor”.

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